quinta-feira, maio 26, 2005

O Sonho é meu!

Foto por Mário Sousa




Sentei-me…
Com as mãos percorri o meu corpo…
Afaguei o rosto,
Arranhei de raiva as costas da minha mão!
Senti dor,
Senti a dor…

Olhei para um espelho
E vi um ser
Apenas um ser…

Com um punhal retalhei o meu corpo!
Sangue,
Sangue, vermelho escuro e espesso,
Carne,
Nervos Ossos,
Desejos…

Desejo de viver…
Desejo viver,
Mas não assim!
Porquê assim?
Porquê?

E, na agonia do desejo,
Sonhei…
Sonho…
Porque só o sonho não me tiram!!!

OUVIRAM? O SONHO NÃO ME TIRAM!!!
O SONHO NÃO ME TIRAM,

O SONHO

NÃO

ME

TIRAM,

O SONHO É MEU!

MESMO QUE ME SUGUEM O SANGUE,
QUE ME RASGUEM A CARNE,
QUE ME CORTEM OS NERVOS,
QUE ME TRITUREM OS OSSOS,
O SONHO NÃO ME TIRAM!!!

O SONHO É MEUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU!!!!!
É MEUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU!
O SONHO É
MEU! MEU! MEU! MEU….

25 de Maio de 2005
Ao Companheiro Mário Sousa

terça-feira, maio 24, 2005

Palavras Gastas

Não ouso dizer estas palavras…
São sobras
Nada significam
Correm inertes
Hoje sinto-me inerte
Como um vegetal que apenas procura água,
Esgaravato no solo com as minhas raízes!
São garras, garras aduncas, horrendas…
Vou desgastando as minhas garras,
Arranho a rocha dura
E esfacelo alegrias breves, pontos luminosos que tenho que apagar…
Gasto as palavras,
As minhas garras…
Estão gastas…
Hoje…

Amadora, 24 de Maio de 2005

segunda-feira, maio 23, 2005

Genesis

No sonho dos tempos
Ventres maduros
Futuros
Passados
Presentes sonhados
Vidas
Vidas
Vidas
E enlaces

E do interior da terra brotará um ser…
Um ser do princípio e do fim
E do sonho que faz viver…

domingo, maio 22, 2005

Homenagem a Giotto

Já expulsaste os demónios de Arezzo
Já contaste a história de Francisco
E do irmão Sol
E da irmã Lua
Também tu falaste com os animais
E brincaste com a água
Ousaste ser diferente
Ousaste criar uma nova geração
E pela tua obra
És agora imortal...

Giotto di Bodone (ou Bondone), nasceu perto de Florença em 1266 e morreu em 1337.Foi discípulo do pintor Cimabue, um dos grandes mestres da tendência bizantina da pintura italiana, mas soube ousar e rompeu com as regras canónicas dessa pintura, sendo, justamente considerado um dos precursores do renascimento italiano. As suas figuras são individualizadas, bastante naturalistas e o artista tenta conferir-lhes uma “alma”. A sua obra mais conhecida são os frescos da basílica de S. Francisco (igreja superior) em Assis. Parece ter sido amigo pessoal de Dante Alghieri (outro criador que soube quebrar as regras), tendo-lhe pintado um retrato, enquanto este refere Giotto numa passagem do seu “Inferno”.

Olé uiiii!

Olá oiiiii!
Ó do barcooooo!
Olé uiiiiii!
Ó da margem!
Trazedes novas?
Trazedes novas da viagem?
Trazemos vidas!
Vidas cansadas, vidas moirentas do trabalho...
Queremos chegar à margem, queremos descansar estas mãos...
Queremos a terra, sentir a terra, sentir os nossos que nos esperam...
Não trazemos novas,
Apenas o trabalho, velho, arquejante, bafiento!
Olé uiiiiiii!
Ó da margem!
Aí está o porto, aí está o abrigo!
Olé uiiiii!
Olé uiiiii!
Chegámos!!!
Olé uiiii!

Prenderam a cerejeira em flor...

Prenderam a cerejeira em flor!
Porque ela brilhou durante a noite...
Porque floriu entre as pedras...
Porque é bela...
Três vultos chegaram num carro escuro,
À entrada da madrugada
E levaram-na!
Está presa...
Porque deu flor...


À Sofia Brás Monteiro

25 de Abril – antes…

Como num frenesim de ninguém
Natureza bruta
Energia pura
Magoa-me a dor
Numa espiritualidade ofendida…

Num tempo pasmado
Sumiu-se o olhar
Nega-se a flor
Fazem do amor
Um monstro de enxofre…

O trigo germinou
Mas o pão é amargo
Sabe a fel
Sabe a sangue
Ofertança divina…

Numa planície árida
Corre um rio entre montanhas…
Vinga-se a dor…
Mãe: morro hoje!
Se não viver…

Junho 2004

sexta-feira, maio 20, 2005

Monumento, experiência em escrita automática, homenagem a Breton

Monumento – Monumare – Recordar…

Uma e quase trinta da manhã, experimento a escrita, grito a escrita, pois não posso gritar a voz!

Monumento – Monumare – Fotografar…

Tento ligar a escrita à fotografia, experimento a fotografia, grito a fotografia, pois não posso gritar a voz!

Olho para aquela coluna, ali à direita – abrir um documento:

ARTE POSTAL iil
Teste formativo 9ª unidade 98
Luísa sobe
Ornatos

Monumento – Monumare – Escrever…

Recordo Breton!

Por favor ensina-me a escrever… ele há lá melhor técnica do que escrever o que nos vem à cabeça, sem peias, sem formas, sem nada!

Memórias!

Nadas!

Uma e quase quarenta da manhã!

Quero partir e estou preso a este mo(nu)mento!

Momento – Monumento – Momento – Monumento

(e no entanto, ela move-se…)

E o sonho começa aqui…

Tudo o que sou, no imaginado
Silêncio hostil que me rodeia,
É o epitáfio de um pecado
Que foi gravado sobre a areia
E ao ver-me nascido
Pobre ente-ser pecado
Romeiro, guerreiro, pau-mandado,
Sou força que rola
Que enrola como onda na areia…
Força perdida mas não pedida…
Fujo ao destino já marcado
Busco forças já vividas,
Por homens que se aprestam a morrer
Se a vida não for só – talvez vivi!
E o sonho começa aqui…

João Castela Cravo
Variação sobre a primeira quadra do poema Memória de David Mourão Ferreira

Olha, um dia hei-de ser como tu...

Olha, um dia hei-de ser como tu!
Hei-de ser como vós!
Um dia…
Um dia, hei-de consegui chorar e gritar e gemer e torcer o destino,
Um dia…
Poderei estar morta
Poderei estar calada num túmulo
Com milhões de almas
Mortas
Caladas
Desfeitas
E então serei como tu
Serei como vós!
Mortos
Calados!

Para ti Mário!
31 de Dezembro de 2004

Criança Feiticeira

Um dia
Hei-de mergulhar nesta claridade do teu olhar
Um dia
Hei-de procurar essa força de ser assim
Criança-mulher
Animal selvagem
Flor silvestre
Pedra preciosa
Água fresca
Jasmim…

Do teu sorriso nascem pétalas
Que encantam…
Feitiços…

Quem quiser

Quem quiser que venha comigo,
Quem quiser que venha ver
Este mundo colorido
A preto e branco,
Estas penas de ave preciosa...
Ave de um paraíso
Colorido,
A preto e branco.
E quem quiser que veja
Estas cores que eu imagino.
E quem quiser que veja
Neste rosto,
Esta luz que o ilumina,
Raios de um sol colorido
A preto e branco...

Hei-los que chegam,
Lavram pedras
Com cinzel, escavam memórias
Cinzentas.
E na minha memória
Cinzenta
E funda muito funda,
Vêm descobrir milagres
E Formas
Cinzentas...
A pedra esboroa-se
Fica em pó, muito pó.
Tapa-me os olhos
E a minha memória
Cinzenta
Pede
Tenham dó...
É um mundo cinzento
Feito em pó...

Amadora, 30.10.02

Ontem voltou o poeta

Ontem voltou o poeta.
Trazia consigo novos caminhos, iluminados pelo Sol.
Num saco o dia, noutro a noite.
Trazia coisas de maravilhar.
Coisas e loisas, bricabraques brilhantes.
Ontem veio cá o poeta.
Trazia um traje de homem do mar, de rebentadas ondas, crisântemos e raminhos de cheiro.
Trazia coisas lindas.
Trouxe também o mar.
E uma saqueta de sal.
E ao ombro uma enxada e uma faca de enxertar.
E disse que eram aquelas as suas ferramentas.
Com elas escrevia, lavrando no coiro suado, tudo o que queria.
Ontem esteve cá o poeta.
Trazia consigo o filho.
Eras tu?
Ontem voltou o poeta.
À luz da vela embalou crianças que dormiram ao luar.
Gostava de ser o poeta.
Trazer-te histórias de encantar.
Gostava de ser o poeta.
À luz da lua cantar.
Cantar rimas velhas num mundo novo.
E não chorar.
Gostava de ser ave e voar.
Subir ao céu e planar.
Ontem voltou o poeta.
Deixou lembranças, esperanças...







Amadora, 7 de Fevereiro de 1990

Noticia de última hora:

Um suspiro atirou-se de um balcão, numa casa de Lisboa!
Fendeu o ar,
Qual pluma verde e azul de um pavão...
E aninhou-se, suavemente,
Nos braços de um ser
Que cá em baixo o esperava...

Pensa-se ser um acto propositado,
Ditado pelo amor,
Graça constante do afecto...

Caminharam os dois na direcção do rio,
Só isso sabem dois pombos,
Única testemunhas deste acto tresloucado...

E quem souber do paradeiro destes dois sentidos,
Por favor guarde bem essa informação!
Nunca se deve dizer onde pára o amor...
Tal facto só se deve sentir...

E quando passarem por este balcão,
Vejam bem!
Reparem se nenhum suspiro vem voando
E se aninhe nos vossos braços...
Qual pluma verde e azul de um pavão...

Aos mestres

Querem um pensamento secreto?
Então tomem lá:
Um dos trabalhos que mais gostei de fazer, foi duas campanhas arqueológicas no Castelo de Noudar, em Barrancos, com o Cláudio Torres, um dos melhores arqueólogos portugueses, a dirigir. Mas para além da escavação, o trabalho implicava a reconstrução de duas casas e de uma igreja, com métodos tradicionais. Foi lá que conheci três mestres que ainda trabalhavam com as técnicas aprendidas dos seus pais e dos seus avós.
Na altura escrevi isto:

Aos mestres João, Caeiro e Manel da Cristina

Mãos nodosas, fortes, rudes,
Modelam o barro, transformam a pedra, empilham o tijolo.
Constróem...
Mãos...
É a inteligência ancestral dos velhos mestres que nos ensinam.
É a suprema singeleza dos homens rudes.
É o trabalho suado dos homens que levantam a torre com o que está no chão.
Os homens que transformam o esbelto xisto,
Na atarracada casa que nos abriga.
Os homens que da lama do chão,
Fazem um monumento.
Mestre, ensina-me a construir,
Tu que com as tuas mãos transformam a terra e afagas uma criança,
Tu, fazedor de coisas, monumento da vida,
És a ponte do passado aos sonhos do futuro!

26.11.1984

Não sei se algum destes mestres ainda está vivo, mas a sua memória permanece nas coisas feitas pelas suas mãos.

Desculpem, mas nestas possíveis vésperas de uma guerra, lembrei-me de quão importante é construir e de quão sujo é destruir...

A um pai (ao meu pai, escrito na altura da morte do pai do meu amigo Mário Sousa)

Os dias passaram
Entre brumas e memórias
Pintaram de verde as almas
Cuidaram de me ver
Aqui, procurei as sombras
Dessas memórias, dessas lembranças
De como me fiz homem
De como aqui cheguei
Sempre sentindo a tua presença
A tua força
Os dias passados permanecem
Aqui!
Vai, procura agora uma fonte
E bebe
Bebe este tempo
E o que me deste
Já chega para a minha sede...

21.01.03

Sonata para Cravo

Tudo se inicia com um silêncio desconcertante...
É tempo de harmonia,
Tempo de preparar os sentidos...
Tempo de amanhar a alma
De procurar um esquecimento doce.
E começa então,
Os sons dançam,
As mãos brincam,
O marfim brilha intensamente...
Quase se vêm os sons
Metálicos, incisivos, curtos, longos...
É agora tempo de nos abandonarmos
Ao som reinante.
Sentir as penas nas cordas
Olhar fixamente para as duas mãos
Que vão e vêm...
Olhai!
Vão e vêm...
Aqui acariciam a tecla,
Ali batem mais forte...
Reparem agora nos olhos da concertante...
Nunca percebi,
Olham para a pauta?
Olham para as teclas de marfim?
Pousam no vazio, intenso?
Mas as mãos...
Olhai as mãos!
Saltitam aqui,
Ali parecem duas senhoricas, presunçosas, mesmo vaidosas...
Agora não!
Agora são mafarricas, marotas...
E como saltitam!
A pouco e pouco o ritmo aumenta...
É tempo agora de nos preparar,
A dança dos sons torna-se alucinante,
É tempo de nos preparar...
O fim está a chegar...
É tempo...
Agora!!!...
Tudo acaba com um silêncio desconcertante...
Quase se vê este silêncio...
Alguém bate palmas...
Afinal, todos batem palmas, sim, eu bato palmas...
Mas queria ter agarrado aquele silêncio,
Aquele silêncio sonoro, que sempre se ouve no final de uma sonata,
Um silêncio intenso, sublime, quase presunçoso...
Vaidoso...

Amadora, 20.05.03

Ao Vasco Ribeiro
Com um abraço

Conheço estes rostos

Conheço estes rostos
Que partilham canseiras,
Tristezas e alegrias,
Por vezes choros,
Muitas vezes risos.

Conheço estes rostos,
Rios, são rios que se espraiam,
Torrentes,
Umas vezes...
Águas calmas, quantas vezes...

Quantas vezes
Partilhámos lamúrias,
Iras,
Raivas,
Vitórias e derrotas
Sinais e palavras...

Quantas vezes me ouviram,
Palavras amargas!
Em dias enuviados...
“João, afinal há Sol”!!!
Confortos,
Carinhos...

Ainda não sei se foi um pesadelo...

Ainda não sei se foi um pesadelo…
(Peso as palavras como se fossem d’oiro)
Fazem-me confusão estas memórias,
Serei eu? Será que as memórias me fazem mal?

E na ondulação deste mar, vejo um rosto de alguém decadente, como um sagrado mane, que me pede para o chorar.

Não sei se foi um sonho, se foi traição…
Atraiçoam-me as palavras, as memórias de um dia ser e não ficar.
Atordoam-me estas memórias,
Serão minhas?

Num lacrimário guardarei todos estes sonhos, pesadelos, antepassados da memória e hei-de, um dia, cavar um poço, onde ficarei prostrado, à espera…

A Escada

Olha...
Se ainda aí estiveres
Não me procures...
Encontra-me!
Se ainda aí estiveres
Não me recordes...
Leva-me contigo,
Escadas acima,
Na tua memória,
Nestas memórias
Que são só nossas.
Ouço murmúrios,
Ouço passos,
Ouço-te a vaguear pela casa...
Procuras-me?
Não me procures...
Encontra-me!
Olha...
Sou eu...
Queres que eu desça?
Afinal as escadas têm destas coisas,
Tanto se sobem como se descem...
Sabem a vida,
São como a vida...
Olha...
Sou eu...
Queres que eu desça?
Tu sobes?

9 de Maio de 2003

Mascarão mascarou

E o mascarão mascarou-se de máscara mascarada de mascarão
E de olhos esbugalhados esbugalhou o esbugalhador esbugalhado
E de cima olhava o olhador que olhou o olhado

Porque a máscara
De olhos esbugalhados
Significa
Mau olhado?

Mas serve a máscara de olhos esbugalhados para nos livrar do mau olhado?

E o mascarão esbugalhado não é mau olhado?

Mulheres

E com quantos advérbios de modo vocês rimam?

Suavemente
Docemente
Candidamente
Naturalmente
Decididamente
Corajosamente
Alegremente
Maternalmente

Respondam-me só a uma pergunta:
Onde vão vocês buscar essa força de ser mulher?
Nesta sociedade que se obstina,
Que nem vos quer dar o vosso próprio corpo?

A estrada e a cidade

Ressurgir da dor!
Renegar a seca flor...
Fica-me a facilidade de sentir,
A faculdade de amar,
Estranhas ondas,
Repletas de açucenas
E arcos de triunfo.

Reassumir a necessidade
Premente
De dizer
Algo mais!

Acrescentar
Áleas de aloendros
A esta cidade-vida-dois,
Em que jardineiros
Se degladiam
Na tentativa vã
De fazer crescer-edificar-reler
Esta cidade,
Uma estrada,
Esta vida,
Assim...
Em flor...

quinta-feira, maio 19, 2005

Pobre comandante…

Desta janela eu vejo um comandante azul!

C
O
M
A
N
D
A
N
T
E

E
M

A
Z
U
L
!

Pobre comandante…
Pobre…
Pobre…
Pobre…

Porque o azul não é uma cor de comandante! O negro é! O negro é…
E o castanho…
E o verde…
Mas azul?
Só podem estar a brincar! Então e a dignidade do comandante? Então o suave torpor negro, castanho ou verde de uma voz de comando, dura, negra, castanha ou verde?

Pobre comandante, sem soldados de chumbo, cinzentos, crianças envelhecidas que odeiam a morte e por isso matam a vida, uma vida sem ais, uma vida sem melancolias… pobre comandante azul, em azul, azuis do céu, azuis do mar, azuis dos olhos, azuis de mil pedras preciosas, águas marinhas roubadas, encastoadas em oiros solarengos, que brilham em mãos vermelhas de rubis e sangue da vida e da morte de tantos outros soldados, crianças envelhecidas que odeiam a morte e por isso matam a vida…

Pobre comandante, carniceiro, talhante, levas soldados, crianças envelhecidas, como cordeiros, como anhos brancos em Páscoas celebrantes e ensaias nos relvados de um cemitério, cerimónias de uma floresta verde, mágica, do tempo dos génios e dos espíritos das pedras e das árvores. E tu oficiante, azul, mas pobre negro pássaro, arrancas os corações aos anhos brancos de Páscoas celebrantes, regurgitando pecados e sentidos talhados pelos cotovelos…

Pobre comandante…
Comandante azul!
Comandante em azul!
Pobre…
Pobre…
Pobre…

Para a Carla d'Almeida Lopes

Lembro

Lembro-me dos segredos murmurados em outros tempos
Em passar defronte a ti, depressa
Em procurar-te com os olhos e ter medo de te encontrar aqui
Lembro-me de visitar estes sinais
E tocar com os olhos nestes tempos
E ouvir murmúrios das pedras
Lembro-me de te perguntar – quem te fez?
E nada ter em troca
Apenas o frio e o sentir cúmplice de um fuste, de um capitel, de um arco...
Voltei aqui, nada encontrei, de novo
Lembra-me para voltar
E voltar a procurar
Por baixo desta abóbada, aqui mesmo, nesta nave
E voltar a ouvir os murmúrios das pedras
E voltar a perguntar – quem te fez?
E nada ter em troca, de novo!
Mas, lembro-me dos segredos murmurados em outros tempos...

Vida

Procurar num gesto a força que vence
Procurar numa flor, um destino cadente
Procurar no amor a alegria serena
E nas palavras, encontrar sentidos
E vidas,
E sonhos,
Utopias…
Como pedrinhas que rolam em rios de montanhas,
Saltitam: tic, tic, tic, toc…
Afastar a dor!
Sempre, afastar a dor,
Com raminhos de cheiro de ervas do monte:
Alecrim…
E num prado de trevos
Verde, tão verde!
Numa noite de luar,
Sentir a seiva fresca do teu olhar…

Pesadelo

Porque não há respostas
Nem sentir
Pesadelo na noite
Tolhem-me os sonhos
E o sentir…

Nem a lua
Só a cidade nua…
E a dor…

Há muito passei o Letes

Há muito passei o Letes, o rio do esquecimento…
Esqueci tudo, até o pensamento!
Prolonguei o fio da vida,
Fiz a minha morada num túmulo,
Em desamor criei…

Hoje acordo e não vejo…
Abro os olhos turvos, embaciados.
Uivo à lua como um lobo,
Com as minhas garras rasgo as entranhas
Desse ser que já fui…

Não penso, não sinto, não sei…
Mata-me a vida sem fim…
Escolho a cruz!
Quero a cruz!
Cravem-me esses cravos, rasguem-me a pele com esses espinhos, arranquem-me a carne com esse látego!!!

Ecce Homo!
Eis o Homem!
Eis-me Homem!

E no fundo da lenda, antevejo a criança que já fui…
Estralhaçada na boca da Memória…

Memórias de Noites Passadas

Memórias de noites passadas
De conversas simples
De amizades serenas
De copos
Anedotas
De sentimentos repartidos
Gozos
Gritos
Raízes da vida
Partilhas
Comidas
Cheiros
Angustias
Projectos
Ansiedades
Vitórias que são de todos
Medos
Futuros
Derrotas por todos sentidas
E o supremo dom de termos filhos
De sentir a dor de cada um deles
E o seu crescer...
Será que crescemos todos?

Cântico da História (com uma pontinha de esperança)

A História é um silêncio doloroso
(dói ouvir o silêncio da História)
É um grito calado na garganta
É um espinho cravado fundo na palma de uma mão
É um ser acontecer entre mágoas e flores silvestres...

Procurai a dor nesta História
Demanda fácil, demasiado fácil
Basta olhar à volta
À nossa volta
(é à nossa volta que as coisas acontecem)
Hei-la, aqui está!
Aqui mesmo!
Sim!
Nesta criança
Dilacerada, conspurcada, aviltada...
Criança sangrada, criança sangrenta!

Procurai agora a miséria
Entre silvas e copos de cristal
(cheios de leite adoçado com mel)
Entre vielas e ventres dilatados
Entre corpos apodrecidos e deuses enegrecidos
São homens que olham ídolos
E à lama chamam barro
Com que lhes moldam os pés...

Procurai tristeza
Olhem os olhos
Vazios
Negros, da cor de um arco íris melancólico
Neles não vereis futuro
Nem passado
Apenas um presente...
(talvez o tempo presente da dor, da grande dor de não ser capaz)

Esta é a História, assim, bolorenta e bafienta
Quase sempre a preto e branco
(mesmo as borboletas fogem da História)
E os espinhos rasgam as carnes das gentes que a afrontam
Tece loas a demónios guerreiros
Carrega tempos ensandecidos, tempos roubados a qualquer memória
Tempos irados de templos quebrados onde gemem vozes enrouquecidas...

Procurai a História
É pó!
É sangue!
É esperança difamada!
(mas talvez um dia, entre o verde e o amarelo de uma giesta, adeje uma borboleta e um sorriso... talvez um dia...)

Sombras em mim

Sabes:
É nestes dias frios que mais sinto o calor das ausências…
Sim, eu sei!
São sentimentos impertinentes,
Incoerentes,
Como pensar em cores e em morte,
Em fogos-fátuos e lábios carmesim…
Mas é no frio que se sente a vida quente dos remorsos,
O calor das sombras que vivem nas paredes nuas de prédios decadentes.
Persigo essas sombras quentes…
Essas sombras que me plasmam contra paredes,
Muros,
Fábulas,
Memórias…
Sabes:
São estas vidas ausentes que entristecem os dias frios…
Sentimentos quentes,
Permanentes,
Sombras em mim…

Um rosto no meio da multidão

Na longa cidade, espectro!
Solidão
Imensidão
Um rosto só
Na agonia da cor e do movimento
E da dor
E do quase sem ver
E da distorção…
Uma raiva contida
Ou não
Ou sem poder conter essa raiva
De estar só
No meio da multidão…

Memória inventada

Memória inventada,
Abusada!
(é a memória de crianças que nunca brincaram, que nunca foram crianças)
Homens que rastejam, numa sepultura fétida.
Aqui jaz a memória!
Em memória,
In memorian,
Lágrimas
Sangue
Lama
Hic situs est
Sit tibis terra levis
Como monstros das lendas antigas
Procuram o cheiro das feridas putrefactas
E das coxas das mulheres
Usadas…
Esventradas!
E as crianças,
Aquelas que nunca brincaram,
Jazem mortas
Bonecas de trapo inventadas…

Fanáticos

Parece que nos émulos de mil almas
encontramos os rugidos dos que morrem
São sombras
basbaques
espantalhos
cataventos!
Nem todos cabem dentro de um céu,
paraíso tribal, solarengo e triste!
Mas porfiam por entrar naquela porta
erectos como estátuas de antigos deuses...
monocromos
saturados de dor, fedor e medo!
E no entanto persistem em querer entrar...
e no entanto...
quando morrem,
continuam a ser o que sempre foram:
Os meninos de sua mãe!


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